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Como definir o que é realidade? Como distinguir o real do virtual, o existente da fantasia? "Fácil", diria o leitor, "basta abrir os olhos, que fica óbvio o que é real e o que não é." Será que a coisa é assim tão simples? Para começar, vamos pensar um pouco sobre como percebemos a realidade à nossa volta. Tudo começa, como afirmou o leitor, com o olhar. Melhor ainda, tudo começa com os cinco sentidos, que trazem ao cérebro a informação do que existe à nossa volta: você está lendo esta revista, pegando nela, sentado numa cadeira, ouvindo uma buzina ao longe, ou uma música, ou o cachorro chato do vizinho. Tudo isso é informação que vem de fora para dentro, do mundo para o nosso cérebro. Nele, essa informação é integrada e orquestrada para representar o que chamamos de realidade. Nossa percepção do real é criada pelo cérebro, resultado da integração da informação colhida pelos nossos sentidos.
E se o cérebro falhar? Existem inúmeras doenças neurológicas e psiquiátricas que distorcem o processamento de informação pelo cérebro. Por exemplo, pessoas que sofrem de esquizofrenia ou distúrbios psicóticos podem ouvir vozes em suas cabeças. Outros distúrbios neurológicos podem fazer com que pessoas possam ver palavras ou ouvir música a cores. Mesmo a depressão, que aflige milhões de pessoas, é uma distorção da percepção da realidade e seu impacto emocional. Drogas psicotrópicas tentam restabelecer o balanço químico do cérebro, de forma a restaurar o senso normal de realidade, seja lá como esse normal for definido. Outras, como o LSD ou a heroína, fazem o oposto, criando distorções tão poderosas na percepção da realidade a ponto de emocionar profundamente os seus usuários. Até droga supostamente sexual já foi inventada, o famoso ecstasy. É irônico que a origem do termo êxtase venha, aparentemente, dos filósofos pitagóricos da Grécia Antiga. Para eles, o estado de êxtase era atingido após meditação profunda, quando o filósofo finalmente compreendia a harmornia matemática do mundo e ouvia a música das esferas ecoando pelo Cosmo. Uma viagem muito diferente…
A separação entre mente e corpo, que vem preocupando filósofos há milênios, é cada vez menos óbvia. Da mesma forma que processos químicos regem nossa digestão, outros tantos regem o funcionamento do cérebro. São 100 bilhões de neurônios (mais ou menos o número de estrelas na Via Láctea, uma coincidência um tanto poética), interligados por trilhões de sinapses. Imagine a teia de informação que é o nosso cérebro, cada neurônio uma lâmpada numa gigantesca árvore de Natal, piscando quando ativada por uma corrente elétrica; uma galáxia dentro de nossas cabeças, imagem digna de uma "viagem" de LSD.
É nessa interface entre o biológico e o elétrico que encontramos a nova fronteira do real. Com o desenvolvimento de microchips cada vez menores e mais poderosos, surge uma nova medicina, e implantes biônicos deixam de ser coisa de ficção científica. Quando esses implantes são efetuados no cérebro, têm o potencial de não só melhorar nossa visão como, também, criar distorções da realidade. O game virtual do futuro será jogado dentro da cabeça, sem necessidade de usarmos os cinco sentidos: todos os estímulos serão efetuados diretamente no cérebro, sem intemerdiários. Levando essa idéia ao extremo, posso imaginar um futuro em que nem precisaremos mais ir à praia ou sair de férias: basta rodarmos o programa certo no cérebro e estaremos lá sem deixar nossa casa. A realidade virtual torna-se real, a distinção cada vez mais indistinguível.
Mas espere aí… já vi esse filme! Chama-se "Matrix", claro, no qual humanos que vivem em casulos imaginam ter vidas normais, amando, chorando, viajando e jogando futebol. Será que chegaremos a esse ponto? Em termos tecnológicos, acho que é apenas uma questão de tempo. Por outro lado, a idéia me aterroriza. É difícil imaginar não tocar a pessoa amada e, mesmo assim, tocá-la, ou não mergulhar num mar azul cristal, cheio de peixes tropicais e, mesmo assim, mergulhar. Somos, ainda, prisioneiros dos prazeres sensuais, dos nossos corpos. É difícil prever se algum dia chegaremos a deixá-los inteiramente de lado e viver uma vida construída artificialmente na mente. No meio tempo, vale celebrar a realidade, aquela que nosso cérebro constrói usando os cinco sentidos.
Marcelo Gleiser, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento
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