Introdução Nos últimos tempos fomos bombardeados por notícias que, segundo os mais exaltados, poderiam abalar irremediavelmente tudo o que se sabia a respeito do cristianismo e de seu líder máximo, Jesus de Nazaré. Em primeiro lugar, Dan Brown e seu "O Código Da Vinci" com a afirmação de que Jesus e Maria Madalena foram casados e tiveram uma filha. Depois, a revelação da tradução do evangelho de Judas que, conforme especulou-se, tirava a culpa do apóstolo pela morte de Jesus. Tanto o livro de Dan Brown quanto as suposições acerca do evangelho de Judas patentearam um fato: após dois mil anos de cristianismo, tudo o que se refere a Jesus e seu movimento, atrai tanto a curiosidade quanto demonstra que muito ainda se ignora acerca desta figura histórica: um camponês judeu do século I, analfabeto, que liderou um movimento marginal, numa província marginal do vasto Império Romano (MEIER, 1992:64). Uma das principais razões para o desconhecimento, e um dos mais fundamentais problemas enfrentados na pesquisa do Jesus histórico, é a ausência de documentação contemporânea ao seu ministério público, iniciado em, provavelmente, 28 E.C. e encerrado, com sua execução sumária em, provavelmente, 30 E.C. Os primeiros textos escritos a respeito da vida de Jesus, produzidos por pessoas que acreditavam naquilo que ele disse e fez, somente apareceram de 20 a 80 anos após a sua morte. Entretanto, pode perguntar alguém, qual o problema disto? Os Evangelhos não contam a vida de Jesus? Não sabemos tudo sobre ele? Se lemos os quatro evangelhos canônicos verticalmente, ou seja, do início ao fim e um depois do outro, ficamos com uma impressão geral de unidade, harmonia e conformidade. Mas se, ao contrário, eles forem lidos horizontalmente, destacando-se uma determinada unidade e comparando a maneira como ela é apresentada em uma, duas, três ou quatro versões, veremos que a discrepância, e não a conformidade é a principal característica dos quatro textos. (CROSSAN, 1994:29). Isto só acontece porque, ainda é Crossan quem diz, "os evangelhos são, em outras palavras, interpretações. Daí, naturalmente, apesar de haver apenas um Jesus, poder haver mais de um evangelho, mais de uma interpretação... Esses quatro evangelhos não representam todos os primeiros evangelhos disponíveis (...) mas são, ao contrário, uma coletânea planejada conhecida como evangelhos canônicos" (CROSSAN, 1995:14). Jesus existiu? Se os evangelhos foram escritos por pessoas que acreditavam fortemente que um homem chamado Jesus ensinou e realizou coisas maravilhosas, um crítico não-cristão poderia levantar a dúvida sobre a sua real existência. Afinal, com exceção dos textos preservados pela Igreja, nenhum outro documento assegura que na Palestina, no século I, um líder de um pequeno grupo foi julgado, condenado, morto pelos romanos e que voltou da morte após três dias. Tudo poderia ser somente uma criação de fanáticos religiosos. Este silêncio sobre Jesus indica que, no seu tempo, ele foi uma figura menos proeminente do que pensam os cristãos de hoje. De acordo com John P. Meier, "seria de admirar que algum judeu ou pagão culto o tivesse conhecido ou mencionado no primeiro século ou no início do segundo" (MEIER, 1992:64). É preciso ter em mente que no vasto império romano, a Palestina consistia numa província marginal, palco de diversas revoltas e que Jesus era um judeu marginal, à frente de um movimento marginal (MEIER, 1992:64). Surpreendentemente e para sorte dos pesquisadores existe uma referência não-cristã sobre a vida e atuação de Jesus escrita no fim do século I. Esta "testemunha" é o aristocrata, político, militar, apóstata e historiador judeu José ben Matthias, conhecido como Flávio Josefo, que escreveu duas grandes obras: A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas. Ela é a única evidência extrabíblica conhecida, do século 1E.C., que evidencia a existência de Jesus. Quer dizer, se não fosse por ela, não haveria nenhuma outra evidência, além dos evangelhos, a respeito de um judeu, que viveu na Galiléia, chamado Jesus. Sobre a pergunta deste tópico, a resposta, portanto, é: sim, Jesus existiu. As fontes cristãs sobre Jesus O primeiro pressuposto a respeito dos evangelhos, enquanto fontes sobre o Jesus histórico, é que eles não são relatos objetivos e históricos sobre o profeta de Nazaré. Eles são evangelhos. Eles aberta e sinceramente se proclamam escritos conforme a fé, para a fé, pela fé (CROSSAN, 2004:182). Levando-se em consideração somente os quatro evangelhos intracanônicos, pode-se dizer que eles são quatro testemunhos influenciados e controlados pelos objetivos teológicos de seus respectivos autores. A propósito, de acordo com os historiadores, a idéia de que os textos bíblicos, em geral, e os evangelhos intracanônicos, em particular, tenham sido escritos pelos indivíduos que lhes dão os títulos não faz nenhum sentido. Estes textos foram baseados em tradições orais transmitidas que foram sendo agrupadas e modificadas, de acordo com a linha teológica de cada comunidade cristã (CAVALCANTE e CHEVITARESE, 2003:21). Até porque, continua Chevitarese, a atribuição da autoria ocorreu mais tarde, por volta do século 3 E.C., quando a Igreja começou o processo que selecionou os livros que seriam considerados canônicos. Conforme acentua Raymond E. Brown, "nenhum dos evangelhos menciona um nome de autor, e é possível que nenhum deles tenha sido escrito por aquele a cujo nome foi ligado no final do século II" (BROWN, 2004:60), reiterando o argumento de Chevitarese. Helmut Köester explica este fato mostrando que os "nomes de apóstolos ou de discípulos específicos de Jesus foram amplamente empregados para dar autoridade e legitimidade a diversos escritos, especialmente em seitas e escolas gnósticas" (KÖESTER, 2005:8). As relações entre os evangelhos Estas discrepâncias entre os evangelhos não invalida a constatação de que os sinóticos - Mateus, Marcos e Lucas -, postos lado a lado, apresentam paralelos que levaram os historiadores a questionar sobre a existência de uma ou mais fontes comuns, quer dizer, a postular sobre as relações literárias entre eles. Hoje é consensual que o evangelho de Marcos é mais antigo do que os evangelhos de Mateus e de Lucas, pois que estes dependem de Marcos enquanto o contrário não se dá. A tradição eclesiástica sustentava a primazia de Mateus, no entanto, os estudos de Christian G. Wilke e de Christian H. Weisse, ambos publicados em 1838, demonstraram convincentemente que Marcos é anterior a Mateus e Lucas e que estes utilizaram aquele evangelho como fonte (KÖESTER, 2005:49). Todavia, os estudiosos ao confrontarem lado a lado os evangelhos sinóticos perceberam dois tipos de correspondência (MACK, 1994:11). Uma era que a linha narrativa de Mateus e de Lucas coincidia apenas quando seguiam a do evangelho de Marcos. A outra correspondência apontava para a existência de um vasto material de sentenças que não aparecia em Marcos, mas que era comum a Mateus e a Lucas. Isso significava que ambos utilizaram uma segunda fonte. Os especialistas passaram a chamar esse documento de Q - abreviatura da palavra Quelle, "fonte" em alemão - e isto causou um grande impacto no mundo acadêmico. Tratava-se de um evangelho perdido, mas oculto no interior de Mateus e Lucas. Este evangelho hipotético, postulado pela maioria dos estudiosos, não é aceito por uma minoria na comunidade acadêmica, mas a descoberta do Evangelho de Tomé, como veremos mais adiante, reacendeu o interesse por ele (HORSLEY e DRAPER, 1999:1). Brown critica os defensores de Q alegando a precariedade de seus raciocínios (BROWN, 2004:198). Sua rejeição a Q relaciona-se ao fato de que "o NT canônico, a cuja autoridade os cristãos se submetem, consiste em livros inteiros, não em fontes reconstruídas, por mais fascinantes que estas sejam" (BROWN, 2004:100). A descoberta de Nag Hammadi Em dezembro de 1945, um camponês árabe do Alto Egito fez uma assombrosa descoberta arqueológica, cujas circunstâncias foram obscurecidas por boatos. Este camponês, Muhammad ‘Ali al-Sammãn, buscando uma terra macia usada como fertilizante, topou, junto com seus irmãos, um pote de cerâmica de quase um metro de altura. Ao abri-lo descobriu em seu interior treze livros de papiro com encadernação em couro. Levou-os para casa e largou os livros e as folhas soltas de papiro sobre a palha amontoada no chão, perto do fogão. Sua mãe admitiu ter queimado vários papiros no fogão com a palha utilizada para atiçar o fogo. Após uma série de episódios de compra e venda no mercado negro, apreensões pelo governo egípcio, histórias dignas de um romance policial, Gilles Quispel, renomado professor de Religião da cidade de Utrecht, na Holanda, conseguiu tê-los à mão e ao traduzi-los, o que encontrou na primeira linha o encheu de espanto. Incrédulo, ele leu: "Estas são as palavras secretas ditas pelo Jesus vivente e escritas por Judas Tomé, o gêmeo". Há muito os estudiosos já sabiam da existência de outros evangelhos, mas a descoberta do texto integral de Tomé suscitou inúmeras questões. Seria esse escrito um registro autêntico dos ensinamentos de Jesus (PAIGELS, 1989:xv)? Neste evangelho, muitos dos ensinamentos de Jesus também estavam presentes no Novo Testamento, todavia, em contextos pouco familiares, adquiriam significados bastante distintos. Outras passagens diferiam completamente das tradições cristãs conhecidas (MEYER, 1993:35): O Evangelho de Tomé que Quispel tinha em mãos era apenas um dos cinqüenta e dois textos descobertos em Nag Hammadi. No mesmo volume, estava o Evangelho de Filipe, que atribui a Jesus palavras e atos totalmente distintos dos que aparecem no Novo Testamento. Mas, por qual razão estes textos permaneceram ocultos por tanto tempo? Sabe-se que estes textos circulavam no começo da era cristã. Contudo, foram denunciados como heresias pelos cristãos ortodoxos de meados do século II. No século IV, com a oficialização do cristianismo pelo imperador Constantino os cristãos majoritários passaram a denunciar como heréticos quem possuísse os livros considerados apócrifos. Registros mostram que muitas de suas cópias foram queimadas e destruídas (PAIGELS, 1989:xix). Será que continham ensinamentos perigosos para a formação da ortodoxia cristã? O "Jesus vivente" desses textos fala de engano e esclarecimento, e não de pecado e arrependimento como o Jesus do Novo Testamento. Em lugar de vir para salvar-nos do pecado, ele vem como um guia que nos abre o caminho do entendimento espiritual. Quando o discípulo alcança o esclarecimento, Jesus não mais o auxilia como mestre espiritual: os dois se tornaram iguais - e mesmo idênticos (PAIGELS, 1989:xx). A grande e mais importante conclusão que os achados de Nag Hammadi trouxeram é descortinar um outro cenário para o cristianismo primitivo. A partir deles, talvez tenhamos que reconhecer que o cristianismo primitivo era muito mais diverso do que quase todo o mundo imaginava (PAIGELS, 1989:xxii). Assim, o mais correto seria dizer "cristianismos" e não "cristianismo", face à diversidade de movimentos só agora vislumbrados com a descoberta de Nag Hammadi. Hoje temos condições de ver que o que chamamos de cristianismo e o que consideramos como tradição cristã constituem na verdade apenas uma pequena seleção de fontes específicas, escolhidas entre dezenas de outras. Ou seja, tanto o cristianismo como, até mesmo o Cristo que o ocidente cultua, são frutos de escolhas realizadas em algum momento por determinadas pessoas.
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